Treino de Consciência Fonológica em crianças com Dificuldades de Aprendizage
Lénia Carvalhais
O termo “dificuldades de aprendizagem” foi apresentado em 1963 por Kirk, embora as dificuldades de aprendizagem sejam parte da condição humana ao longo dos séculos. Há evidências de que antes do ano 3000 a.C., os chineses já tinham por hábito avaliar as capacidades dos indivíduos, aplicando testes estandardizados.
De acordo com a definição da National Joint Comittee on Learning Disabilities (Lyon, 1996), o termo dificuldades de aprendizagem é um termo genérico, que engloba um heterogéneo grupo de perturbações, manifestadas por dificuldades significativas na aquisição da fala, da leitura, da escrita e do cálculo matemático. Estas perturbações são resultantes de disfunções ao nível do sistema nervoso central. A definição apresentada por Individuals with Disabilities Education Act (IDEA) considera que:
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Uma dificuldade de aprendizagem é uma perturbação em um ou mais processos psicológicos básicos, envolvidos na compreensão ou uso da linguagem, falada ou escrita, que se pode manifestar em dificuldades de ouvir, pensar, falar, ler, escrever ou efectuar cálculos matemáticos,
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Este termo não inclui problemas de aprendizagem resultantes de perturbações primárias da visão, audição ou domínio motor, bem como atraso mental, distúrbios emocionais ou desvantagens económicas, sociais ou ambientais.
Muitos factores podem influenciar, potencialmente, o desenvolvimento da leitura e escrita. Factores extrínsecos à criança como a cultura, a questão socioeconómica e os métodos de instrução, bem como factores intrínsecos como a capacidade intelectual, as funções sensoriais e físicas, as capacidades de produção oral, o conhecimento de conceitos escritos. Contudo, é ponto assente que a aquisição da leitura e escrita necessita de uma compreensão cuidadosa de como a criança desenvolve uma consciência explícita da estrutura dos sons das palavras. A percepção dos sons do discurso na infância ocorre a um nível inconsciente enquanto a consciência fonológica requer da criança um conhecimento explícito da estrutura dos sons das palavras produzidas oralmente. Muito antes de a criança ser capaz de avaliar explicitamente a estrutura fonológica das palavras, esta deve ser capaz de desenvolver um conhecimento fonológico implícito, que lhe permita adquirir mestria na fala e na compreensão da sua língua materna. O conhecimento fonológico implícito permite, por exemplo, às crianças avaliar se uma palavra pertence à sua língua, bem como a auto correcção de erros do discurso, possibilitando a discriminação entre variações aceitáveis ou incorrectas das palavras faladas (Yavas, 1998). Já o conhecimento explícito da estrutura da língua implica que a criança reconheça a estrutura subjacente às palavras, nomeadamente que a palavra se pode dividir em unidades mais pequenas.
A aquisição da competência da linguagem escrita é um processo complexo e não natural. Um vasto corpo de pesquisas, empregando diferentes metodologias e procedimentos numa variedade de línguas alfabéticas, demonstrou uma forte relação existente entre a consciência fonológica e o desenvolvimento da literacia. Na verdade, o conhecimento acerca da competência fonológica da criança tem sido apresentado como o melhor predictor do desenvolvimento da leitura (Liberman, Shankweiler, & Liberman, 1989). O termo “consciência fonológica” surgiu em finais de 1970 e refere-se à consciência individual da estrutura do som de uma palavra falada. Na década de 90, verificou-se um rápido e assinalável crescimento nos estudos que investigaram a importância da consciência fonológica para a leitura e escrita, o que levou à adaptação geral do termo na literatura científica e na educação, nas patologias da linguagem e nas práticas da psicologia clínica.
A capacidade para prever se as crianças em idade pré-escolar experimentam dificuldades na leitura e na escrita tem um enorme valor social, económico e educacional. A identificação de uma criança com problemas de leitura e escrita permite uma intervenção precoce, a fim de prevenir problemas escolares. Em particular, o poder da previsão da consciência fonológica em relação a uma performance tardia de leitura e escrita também é determinante.
Provando as primeiras pesquisas que estabeleciam uma relação entre a consciência da estrutura dos sons das palavras e a realização da leitura, Lundberg et al. (1980) implementaram a primeira investigação compreensiva, no sentido de analisar a relação entre leitura e escrita, baseada em medidas de avaliação da consciência fonológica na pré-escola. Os resultados indicaram que a performance nas tarefas de manipulação dos fonemas em crianças em idade pré-escolar é uma forte predictora da leitura e escrita nos anos seguintes.
Vários estudos têm demonstrado que o treino da consciência fonológica em crianças com dificuldades de aprendizagem tem contribuído para o desenvolvimento da literacia. A compreensão da informação e das ideias expressas é, sem dúvida, o objectivo principal da leitura e da escrita e que se encontra tanto mais desenvolvido, quanto maior for a capacidade de descodificação do código escrito.
O treino das competências fonológicas implica diversos níveis, nomeadamente o nível silábico, o nível do início e da rima das palavras e o nível fonémico, bem como diferentes graus de dificuldade, dependendo da idade e desenvolvimento da criança.
Para trabalhar a consciência fonológica ao nível da estrutura silábica podem ser utilizados os seguintes exercícios:
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Segmentar uma sílaba, por exemplo, “Quantas sílabas existem na palavra café?”
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Completar uma sílaba, por exemplo, “Esta é uma imagem de um coelho. Eu direi a primeira parte da palavra. Podes terminar a palavra coe___?”
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Identificar uma sílaba, por exemplo, “O que é que pata e lata têm igual?”
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Eliminar uma sílaba, por exemplo, “ Diz gata. Agora repete sem dizer ta”
Para além do nível silábico, é fundamental um treino ao nível do início e rima. Mais comummente, este nível de consciência está relacionado com tarefas de rima, porque, para perceber a rima da palavra, tem que existir primeiro a consciência de que as palavras partilham um final comum, que pode ser separado do início da palavra. Diferentes modelos de consciência do início da palavra e da rima incluem:
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Reconhecimento da rima, por exemplo, “Estas palavras têm a mesma rima: mala e mata?”
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Criação de rima, por exemplo, “Diz uma palavra que rime com feijão.”
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Identificação de palavras com o mesmo início: “Estas palavras começam pelo mesmo som: gata e nata?”
O último nível é o fonémico, sendo que um fonema pode ser definido como a mais pequena unidade de som. Os fonemas são conceitos abstractos. Quando uma palavra é pronunciada, o ouvinte não ouve os fonemas separados, pelo que os indivíduos devem aprender a perceber os fonemas no discurso. Já ao nível da consciência fonémica podem ser utilizadas tarefas como:
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Jogo de fonemas “Junta o p e o ão e diz qual a palavra que descobriste.”
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Eliminação de fonemas “Tira o r da palavra rato.”
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Segmentação de fonemas “Quais são os sons da palavra mel.”
O grande interesse na consciência fonológica, ao nível da educação, saúde e clínica, foi acrescido por uma quantidade significativa de pesquisas, que demonstram a relação entre as performances das tarefas de consciência fonológica e a melhoria na capacidade para ler e escrever. Em particular, descobertas resultantes dos estudos de intervenção, os quais demonstraram a pouca presença de exercícios da consciência fonológica no desenvolvimento da competência leitora e na performance da compreensão da leitura, conduziram a um aumento pragmático do interesse na consciência fonológica. A importância da consciência fonológica no desenvolvimento da escrita também foi reconhecida. Escrever já não é mais considerado um exercício de memorização visual. Na verdade, a escrita é agora vista como uma capacidade de linguagem – base, no qual o conhecimento da estrutura dos sons da fala é uma importante componente.
Assim, o treino da consciência fonológica nos primeiros anos de aprendizagem da leitura e escrita parecem ser determinantes, particularmente em crianças com dificuldades de aprendizagem.
Referências:
Guillon, G. (2004). Phonological Awareness: from research to practice. London: The Guilford Press.
Kirk, S. (1963). Behavioral Diagnosis and Remediation of Learning Disabilities. In Proceedings of the Conference on exploration into the problems of the perceptually handicapped child (Evaston, IL: Fund for the perceptually handicapped child, Inc.), 1-7.
Lundberg, I., Olofsson, A., & Wall, S. (1980). Reading and spelling skills in the first years predicted from phonemic awareness skills in kindergarten. Scandanavian Journal of Psychology, 21, 159-173.
Liberman, I. Y., Shankweiler, D. & Liberman, A. M.(1989). The alphabetic principle and learning to read. In M. Studdert-Kennedy (ed.), Status Report on Speech Research. January-June 1990. New Haven, CT: Haskins Labs.
Lyon, G. (1996). Learning Disabilities. The Future of Children 6, 54:56.
Yavas, M. S. (1998). Phonology: Development and disorders. San Diego: Singular Publishing.
Lénia Sofia de Almeida Carvalhais, doutoranda do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro, com o projecto “Construção de um Instrumento de avaliação da dislexia em crianças dos 8-12 anos”, sob a orientação do Professor Catedrático Carlos Fernandes da Silva, da Universidade de Aveiro e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.